Aconteceu na muy leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Francisco e a mulher moravam num sobrado velho com as seis crianças. Ele, um ex-escravo, trabalhava na venda de um mascate em troca de uns parcos tostões. A mulher era ama-de-leite de uma família abastada de Laranjeiras. Os dois dividiam a casa com outras sete famílias, todas empregadas em ocupações tenebrosas: lacaios, carregadores de armazéns e tigres, como se chamavam na época os homens que transportavam e despejavam no mar as fezes e os dejetos da cidade.
Para aquela gente amontoada em construções antigas e subsistindo no fio da navalha, a vida já era difícil o basta nte. Mas ela não tardaria a piorar. Em algum dia de março de 1904, Francisco voltava da venda a pé até o centro porque não tinha dinheiro para pagar o bonde, e também porque se pedia dos passageiros rigor no traje e na compostura, uma exigência muito além das posses, dos modos, e do odor de Francisco.
De repente, ele se depara com homens da prefeitura cavucando a calçada com picaretas. Mais alguns passos, e outro buraco. E outro, e outro. Todas as pequenas ruas da cidade estão sendo esburacadas. Em alguns pontos, não se pode passar. Há barulho de explosões aqui e mais além. Ouve-se um tocar de cornetas e, em seguida, um prédio vem abaixo. As obras são anunciadas em placas que Francisco não sabe ler. Perto da Rua da Constituição, cavalariços impedem sua passagem. Do outro lado da calçada, a mulher e os filhos choram abraçados.
Ele tenta acudir, mas um soldado o impede de cruzar a rua. No meio do barulho, não entende os gritos da mulher, o desespero das crianças. Ouve um outro estrondo e então, assombrado, vira-se para trás e vê o prédio em que mora ir pelos ares. Uma nuvem de fumaça cobre a rua e se mistura ao tropel dos cavalos. Toda a sua vida miserável, suas economias, estão ali. O quartinho que a custo havia erguido com as próprias mãos para os meninos, o tanque para a mulher, e até uma cortina improvisada com folhas de bananeira para dar alguma privacidade às filhas adolescentes. Francisco não entende o porquê de tanta violência. E num assomo de revolta, investe contra um pelotão de cadetes. Esmurra dois ou três até ser contido, amarrado e amordaçado. Onde já se viu esse negro insolente, que ainda outro dia andava a ferros, estar agora a dar sopapos em oficiais da República?
É imediatamente recolhido aos porões da prisão na Praça XV, e ali vai ficar por oito meses a pão e água, além dos castigos corporais impostos a um ato de tal gravidade. A mulher Inês acaba perdendo o ofício e passa a vagar com as crianças pelas ruas do Rio atrás de esmolas e restos de comida. A demolição do prédio que trouxe a desgraça para a família de Francisco havia sido decidida meses antes, em algum bistrô elegante de Paris. O prefeito Pereira Passos visitava a capital francesa e ficou impressionado com a beleza da cidade, cortada por ruas espaçosas, de comércio variado e sofisticado.
Decide então importar o desenho urbanístico para o Rio de Janeiro, naquela época já uma cidade de espantosos encantos geográficos, mas cercada por brejos, päntanos e habitada por uma população miserável, que, na visão da burguesia de antanho, procriava como ratos em pocilgas do centro da cidade. A solução do prefeito é botar tudo abaixo.
Em pouco tempo, Pereira Passos manda demolir seiscentos prédios em mau estado de conservação, abrindo caminho para a construção de um corredor arejado, nos moldes das avenidas francesas. Depois de quase dois anos de obras, voilà: está pronta a Avenida Central, inaugurada com pompa e circunstância na presença do presidente Rodrigues Alves. 1800 metros de comprimento em linha reta, 35 de largura, dividida por canteiros de mudas de pau-brasil: um boulevard majestoso à altura da cidade que quer ser a Paris das Améri cas. Do outro lado da cidade, Francisco e Inês andam sem rumo, sem saber que a casa deles havia sido implodida pela Belle-Époque. Acabam chegando a Botafogo, atraídos pelos palacetes que florescem no bairro no início do século, com seus saraus luminosos, capazes de produzir sobras de comida em quantidade.
Inês consegue se empregar como ajudante de cozinheira. Nunca chega a entrar num salão de baile. Às vezes, entre as frestas das portas, vislumbra saias rodadas varrendo o piso e rodopios de sobrecasacas ao som de uma valsa vienense. Imagina se um dia seus filhos terão a chance de entrar num lugar daqueles pela porta da frente.
Francisco dorme na praia com as crianças e passa a procurar um paradeiro para a família. Acaba encontrando pouso num cortiço da Rua da Passagem, conhecido como Cabeça-de-Porco. Cerca de quatro mil pessoas se espalham pelos seus quartinhos fétidos, muitos alugados por lavadeiras, operários, e criminosos de toda espécie.
O cortiço tem por proprietário o Conde D'eu, casado com a Princesa Izabel, que acabou com a escravidão no Brasil assinando a Lei Áurea. Não se sabe, até hoje, se ela ganhou alguma comissão para dar a penada que tiraria os escravos das senzalas e os empurraria para os cortiços - esse lucrativo negócio administrado pelo marido. Certo mesmo é que muitos ex-escravos vão parar ali. Um outro contingente de negros, em condição ainda mais miserável que a de Francisco, começa a subir os morros e a se instalar em barracos. É o início da favelização da cidade.
Um dia, Francisco passa pela Avenida Central e se depara com um cenário suntuoso: charretezinhas disputam espaço com vitórias e tílburis, os charmosos antepassados dos nossos táxis. Os bondes, considerados um transporte popular, estão proibidos de trafegar por ali. Prédios imponentes ocupam o lugar dos antigos sobrados. Moças bonitas e vistosas passeiam de sombrinha e falam um idioma que Francisco não entende. Muitos anos vão se passar até que os filhos e os netos de Francisco tenham dinheiro para finalmente entrar nos bondes e depois nos ônibus.
A Avenida Central foi rebatizada. Hoje, se chama Avenida Rio Branco. Aqui e ali, guarda um pouco de pompa neoclássica em sua arquitetura, mas perdeu toda a circunstância do início do século. Durante o dia, é uma passarela de executivos, secretárias e office-boys. O trânsito caótico, barulhento e poluído abafou todos os vestígios de sotaque francês. Os bancos, edifícios comerciais e lojas de fast-food dominam a paisagem.
Quase nada sobrou do Rio Antigo. Só uma sombra dele se projeta nas calçadas quando a noite cai: assim que as lojas fecham suas portas, um exército de mendigos começa a tomar posição debaixo das marquises. Às vezes, podem-se contar centenas deles. Homens, mulheres e crianças formam essa legião de miseráveis. Famílias inteiras vêm com trapos e caixas de papelão e vão montando suas paredes, janelas, portas, e até os tetos em noites de chuva.
Para construir a Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, Pereira Passos expulsou gente como essa, a gentalha, na visão da classe dominante. Sobre suas casas demolidas, ergueu um Rio francês, buliçoso, cidade-luz abaixo da linha do Equador. Para muitos, foi o melhor prefeito que o Rio já teve, o homem que reinventou a cidade com um traçado moderno e o primeiro a enxergar sua vocação turística. Pereira Passos só não imaginava que os fantasmas daquela gente que ele enxotou de forma barulhenta viriam assombrar o centro da cidade, em silêncio, um século depois.
Olhe com atenção e você vai ver: Francisco, Inês e as seis crianças estão ali. Chegam, se enfiam debaixo das caixas de papelão e dormem nas calçadas. Têm a mesma expressão sofrida, o mesmo andar errante, a mesma sina desgraçada, o mesmo olhar suplicante. Todas as noites, estão ali para nos lembrar que é deles aquele lugar. Todas as noites, vêm reclamar a antiga moradia.
Texto:
(*) Jorge Velente é jornalista e escritor
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